TEIXEIRA, Anísio. Mestres de amanhã. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.40, n.92, out./dez. 1963. p.10-19.
MESTRES DE AMANHÃ *
ANíSIO S. TEIXEIRA
Diretor do INEP
Creio, no exame do tema que nos ocupa, que não
me cumpre exprimir apenas ansiedades e esperanças a respeito dos mestres
de amanhã, mas procurar antecipar, em face das condições e da situação
de hoje, o que poderá ser o mestre dos dias vindouros. E entre os
mestres buscarei, sobretudo, caracterizar os mestres do ensino comum, do
ensino destinado a todos, ou seja, na fase contemporânea, os mestres da
escola primária e da escola secundária.
Deixarei de considerar o mestre de nível
universitário, pois êste não está a passar pelas mesmas mudanças, que
começam a atingir o mestre da escola comum e, de certo modo, se está
também a mudar, é muito mais dentro de linha que não apresenta ruptura
com a situação anterior, mas a desenvolve e aperfeiçoa.
É o mestre da escola elementar e da escola
secundária que está em crise e se vê mais profundamente atingido e
compelido a mudar pelas condições dos tempos presentes. E por quê?
Porque estamos entrando em uma fase nova da
civilização chamada industrial, com a explosão contemporânea dos
conhecimentos, com o desenvolvimento da tecnologia e com a extrema
complexidade conseqüente da sociedade moderna.
Na realidade, o nosso esfôrço pela educação do
homem, até muito recentemente, não chegou a ultrapassar os objetivos de
prepará-lo para uma sociedade muito mais singela do que a sociedade
moderna. Tomando o exemplo das sociedades desenvolvidas, que chegaram,
como no caso da América do Norte, a oferecer educação a todos até os
dezoito anos, a escola elementar e a secundária constituiram-se em
escolas intelectualmente desambiciosas, destinadas a oferecer uma
educação capaz de formar os jovens para o convívio político, social e
econômico de uma sociedade de trabalho competitivo mas ao que se
acreditava relativamente singela e homogênea. A criação mais original da
sociedade americana nesse campo foi a da comprehensive school de
nível secundário, com a flexibilidade dos seus currículos e a
concentração na mesma escola de alunos os mais diversos nas aptidões,
nas opções de estudo, na inteligência e nos objetivos escolares.
Esta escola, que resistiu ao severo estudo e
análise de Conant, representa, na realidade, uma inovação em seus
aspectos fundamentais. Constitui uma antecipação, se considerarmos que
sua filosofia importa reconhecer certa unidade da cultura contemporânea,
a despeito de sua aparente diversidade, e a equivalência das diferentes
carreiras a que se iriam devotar os seus alunos.
Correta, assim, na sua estrutura, não creio,
entretanto, que tenha conseguido realmente oferecer uma educação à
altura do desafio dos nossos tempos. O que os nossos tempos pediam era,
uma forte educação intelectual para o jovem moderno, a despeito das
diferentes aptidões que possuísse, dos diferentes interêsses que
revelasse e das diferentes carreiras a que se destinasse. A escola
compreensiva reuniu todos os jovens na mesma escola e, para lhes dar a
impressão de uma educação comum, diluiu o conteúdo dos diferentes
programas, a fim de lhes emprestar uma equivalência, que só por essa
diluição se fazia verdadeira.
Entrementes, que se passava com a civilização
contemporânea? Entrava ela em fase de desenvolvimento científico até
certo ponto inesperado, levando-a na indústria à automação, na vida
econômica a um grau espantoso de opulência e na vida política e social a
desenvolvimento de meios de comunicação de tal extensão e vigor que os
órgãos de informação e de recreação se viram sùbitamente com o poder de
condicionar mentalmente o indivíduo, transformando-o em joguête das
fôrças de propaganda e algo de passivo no campo da recreação e do
prazer.
O desenvolvimento contemporâneo no campo dos
processos de comunicação já foi comparado com o correspondente ao da
descoberta da imprensa, que gerou também, conforme sabemos, um período
de certa degradação na difusão do conhecimento semelhante ao que se
observa hoje com a utilização dos meios de comunicação em massa.
A verdade é que cada meio nôvo de comunicação,
ao surgir, não produz imediatamente os resultados esperados mas, muitas
vêzes, a difusão do que há de menos interessante, embora mais
aparentemente popular, na cultura comum.
Não é apenas isto. Cada meio nôvo de comunicação
alarga o espaço dentro do qual vive o homem e torna mais impessoal a
comunicação, exigindo, em rigor, do cérebro humano compreensão mais
delicada do valor, do significado e das circunstâncias em que a nova
comunicação lhe é feita.
Se partirmos do período da simples comunicação
oral de pessoa a pessoa que se conheçam mùtuamente no pequeno meio
local, para a comunicação com o estranho e depois para a comunicação
escrita ainda entre pessoas que se conheçam (correspondência) e, a
seguir para a comunicação escrita pelo texto e livro e pelo jornal,
ainda locais, e, afinal, pelo telégrafo, pelo telefone, pelo cinema,
pelo rádio, pela televisão, pela comunicação estendida a todo o pIanêta
que faz sùbitamente o homem comum não apenas o habitante de sua rua, sua
cidade, seu Estado, sua nação, mas literalmente de todo o planêta e
participante de uma cultura não apenas local e nacional mas mundial,
podemos ver e sentir o grau de cultivo mental necessário para lhe ser
possível submeter a informação, que lhe é assim trazida de todo o mundo,
ao crivo de sua própria mente, a fim de compreendê-la e absorvê-la com o
mesmo sentido de integração com que recebia a comunicação local e
pessoal do seu período paroquial de vida.
Não sòmente, a comunicação se fêz assim
universal no espaço, como também, com os novos recursos técnicos, se
estendeu através do tempo, podendo o homem em uma simples sessão de
cinema visualizar as civilizações ao longo da história, como sucede nos
grandes espetáculos modernos em que a cultura antiga é apresentada de
forma nem sequer sonhada pelos mais ambiciosos historiadores do passado.
Tôda essa imensa revolução dos meios de
comunicação não poderia deixar de criar, em sua fase inicial, antes a
confusão do que o esclarecimento, sobretudo porque êsses meios não foram
sequer conservados na posse dos grupos responsáveis pela educação do
homem, como a escrita e a imprensa, por exemplo, de certo modo se
mantiveram, mas se fizeram recursos para a propaganda e a diversão
comercializada, quando não para o condicionamento político e ideológico
do homem.
A educação para êste período de nossa
civilização ainda está para ser concebida e planejada e, depois disto,
para executá-la, será preciso verdadeiramente um nôvo mestre, dotado de
grau de cultura e de treino que apenas começamos a imaginar.
Desde que surgiu a cultura escrita na história
humana jamais faltaram guardiães, tanto quanto possível competentes,
para conservá-la e defender-lhe, por vêzes excessivamente, a sua pureza.
Quando afinal surgiram as universidades, o engenho humano tudo fêz para
resguardar-lhes a liberdade e a independência, a fim de que o saber
humano pelos que soubessem fôsse conservado e cultivado.
Ao ampliar-se a universidade pelas escolas de
cultura comum para todos, o preparo do mestre - ou seja, o guardião e
transmissor da cultura - se fêz até o comêço do nosso século com
razoável proficiência. Tanto quanto possível era êle o transmissor de
uma cultura cuja significação e limites conhecia e, sobretudo, era o
mais importante transmissor dessa cultura, estando em seu poder comandar
até certo ponto a formação do educando.
Com a expansão dos meios de comunicação, o
mestre perdeu êsse antigo poder, passando a ser apenas um contribuinte
para a formação do aluno, que recebe, em relativa desordem, por êsses
novos meios de comunicação, imprensa, rádio e televisão, massa incrível
de informações e sugestões provenientes de uma civilização agitada por
extrema difusão cultural e em acelerado estado de mudança.
A Universidade conservou, a despeito de tudo, um
certo contrôle dessa cultura extremamente difusa e em explosiva
mudança, graças à alta qualidade dos seus professôres e à vigorosa
institucionalização de sua independência e sua liberdade, mas as escolas
de cultura geral do homem comum ficaram com os mestres preparados para
ministrar a cultura muito mais simples e paroquial do século passado.
Bem sei que o preparo dêstes mestres se faz cada vez mais longo e nos
países mais desenvolvidos já está francamente exigindo graus
universitários. A tarefa, entretanto, é bem mais difícil e complexa.
Recentemente, na Inglaterra, fêz-se uma
experiência de ensino universitário - o colégio universitário de Keele,
que me parece merecer aqui uma referência. Como sabemos, o University
College of North Staffordshire surgiu em 1950, com a intenção de criar
um tipo nôvo de ensino universitário. Não irei descrever em detalhe a
experiência de Keele, mas apenas comentar o primeiro ano de estudos
desse nôvo colégio universitário, que constitui um exemplo do tipo
global de cultura que seria necessário ao homem moderno. O propósito
dêsse ano inicial, chamado de fundamentos, é o de rever, discutir e
ilustrar os fundamentos, a herança, as conquistas e os problemas da
civilização ocidental. Tomo do relatório sôbre o progresso dessa
experiência, no Educational Year - book de 1959, a seguinte formulação
dos objetivos dêsse primeiro ano de estudos: O curso começa "levando os
estudantes, pela contemplação dos céus, à luz da astronomia e da física
moderna, a um sentimento de espanto, maravilha e beleza. Não sòmente o
estudante de arte mas também o cientista vê sob essa nova luz a fé e os
métodos do físico, numa súmula do progresso científico a partir de
Kepler, Galileu e Newton até as excitantes especulações da moderna
cosmologia. Acompanhando os passos da inquirição humana desde a
indagação de Olbert "Por que é a noite escura?" até a teoria da criação
contínua, sentir-se-á o estudante a reproduzir essa extraordinária
aventura da mente humana no seu esfôrço de imaginar e descobrir a
natureza do universo. Segue-se o geólogo com a descrição da história da
terra durante os 3.000.000.000 de anos ou mais que antecederam o
aparecimento do homem. O geógrafo, depois, estuda o clima e os fatôres
do meio ambiente. O biólogo introduz os sêres vivos e analisa as teorias
da origem e a evolução do homem. Já aí os estudantes terão atingido a
dose de humildade suficiente para apreciar as conquistas das primeiras
civilizações, que lhe serão apresentadas pelos professôres de saber
clássico, pelo filósofo, pelo teólogo e pelo historiador. Daí prossegue o
curso introduzindo o estudante na consideração dos característicos e
dos problemas da civilização ocidental numa era industrial, conforme os
vêem os historiadores, os geógrafos, os cientistas políticos, os
educadores e os economistas. A perspectiva já então é a dos dias de
hoje, projetada dêsse fundo histórico, a fim de levar o estudante a
sentir e apreciar os muitos e sérios problemas que hoje nos defrontam. A
terceira parte do curso se detém nas realizações criadoras do homem - a
língua, a literatura, as artes, a música, a arquitetura, as
matemáticas, as ciências e a tecnologia e, por fim, o próprio homem e
sua crença serão estudados por filósofos, psicólogos, sociólogos,
teólogos e biólogos."
Atrevo-me a considerar que êste deverá ser
amanhã o programa de educação comum do homem moderno e não apenas, como
em Keele, a introdução aos estudos de nível superior. Com os recursos
técnicos modernos, estamos em condições de oferecer a cada jovem, antes
de terminar o nível secundário de estudos um quadro da cultura
contemporânea, desde os seus primórdios até os problemas e complexidades
dos dias presentes. Não teremos todos os professôres especializados com
que conta Keele para a sua experiência, mas, com os recursos da
televisão, do cinema e do disco podemos levar todos os jovens a ver e
ouvir, ou, pelo menos, a ouvir, êsses especialistas e, a seguir, com o
professor da Classe, desdobrar, discutir e completar as lições que
grandes mestres dêsse modo lhe tenham oferecido.
Mesmo assim, entretanto, será imensa a tarefa do
professor secundário e grande deve ser o preparo, para que possa
conduzir o jovem nessa tentativa de dar à sua cultura básica a largueza,
a segurança e a perspectiva de uma visão global do esfôrço do homem
sôbre a terra.
Os meios modernos de comunicação fizeram do
nosso pIanêta um pequenino planêta e dos seus habitantes vizinhos uns
dos outros. Por outro lado, as fôrças do desenvolvimento também nos
aproximaram e criaram problemas comuns para o homem contemporâneo. Tudo
está a indicar que não estamos longe de formas internacionais de
governo. Se a isto juntarmos a explosão de conhecimentos e as mudanças
que os novos conhecimentos, com as suas consequências tecnológicas,
estão a trazer, podemos imaginar até que ponto as fôrças do costume, dos
hábitos e das velhas crenças e preconceitos vão ser destruídas e quanto
vai o homem depender de sua cultura formal e consciente, de seu
conhecimento intelectual, simbólico e indireto, para se conduzir dentro
da nova e desmesurada amplitude de sua vida pessoal. São portanto de
assustar as responsabilidades que aguardam o mestre de amanhã. Sabemos o
que se conseguiu, no passado, com a educação de grupos seletos de
estudantes. Alguns estabelecimentos de educação secundária na Europa -
refiro-me sobretudo ao esfôrço de educação seletiva acadêmica da França e
da Alemanha e à educação intelectual e de caráter das english public schools
- conseguiram dar, em nível secundário, formação humana significativa
para a compreensão das civilizações clássicas e do seu ideal de homem
culto. A nossa tarefa é hoje muito mais difícil. Primeiro, porque
precisamos fazer algo de semelhante para todos e não apenas para alguns e
segundo porque já não estaremos ministrando a cultura clássica mas a
complexa, variada e, sob muitos aspectos, abstrusa cultura científica
moderna.
Diante dos novos recursos tecnológicos, ouso
crer ser possível a completa reformulação dos objetivos da cultura
elementar e secundária do homem de hoje e, em consequência, de alterar a
formação do mestre para essa sua nova tarefa.
Que haverá já hoje que nos possa sugerir o que
poderá vir a ser a escola de amanhã? Perdoem-me que lhes lembre as
transformações operadas nos grandes empreendimentos que dirigem a
informação e as diversões modernas: a imprensa, o cinema, o rádio e a
televisão. Entregues à iniciativa privada e dominados pelo espírito de
competição, o jornal, a revista, a produção de filmes e as estações de
rádio e de televisão tornaram-se grandes serviços técnicos e
desenvolveram tipos de profissionais especializados, dotados de extrema
virtuosidade, que se empenharam em se pôr à altura dos recursos
tecnológicos e do grau de expansão da cultura moderna. Algo de
semelhante será o que irá suceder com a escola, com a classe e com o
professor. Se a biblioteca, de certo modo, já fizera do mestre um
condutor dos estudos do aluno e não pròpriamente o transmissor da
cultura, os novos recursos tecnológicos e os meios audiovisuais irão
transformar o mestre no estimulador e assessor do estudante, cuja
atividade de aprendizagem deve guiar, orientando-o em meio às
dificuldades da aquisição das estruturas e modos de pensar fundamentais
da cultura contemporânea de base científica em seus aspectos físicos e
humanos. Mais do que o conteúdo do conhecimento em permanente expansão,
cabe-lhe, com efeito, ensinar ao jovem aprendiz a aprender os métodos de
pensar das ciências físico-matemáticas, biológicas e sociais, a fim de
habilitá-lo a fazer de tôda a sua vida uma vida de instrução e estudos.
Talvez se possa dizer, embora represente uma
grande simplificação, que a educação até há pouco tempo oferecida pela
escola não passou, no nível elementar, da aprendizagem das artes de ler e
escrever, como instrumento de comunicação e de trabalho, seguida de uma
iniciação medíocre à vida cívica e política de sua nação; no nível
secundário, do preparo do adolescente para as ocupações que requerem
certo nível técnico e para a continuação dos seus estudos em nível
superior; e, no nível superior, do preparo do profissional de nível
superior e o do scholar ou pesquisador. Fora disto, há que notar
que as universidades se constituíram elas próprias centros de pesquisa,
de descoberta do conhecimento e de sua expansão.
Ora, sòmente êste grupo último de pesquisadores
está efetivamente de posse dos instrumentos e dos objetivos da cultura
científica em que estamos imersos e que nos conduz, sem dela têrmos real
e efetiva consciência. O próprio scholar e pesquisador, embora
seja o maior contribuinte dessa cultura moderna, só raramente tem dela
consciência adequada, pois o grau de especialização do seu trabalho o
obriga a tal concentração de esfôrço e de interêsse, que lhe dificulta
se não impede a visão global dessa cultura.
O fato contudo de estar mais empenhado em
descobrir, em aumentar o saber do que no saber existente pròpriamente
dito, fá-lo o que há de mais próximo em nossa sociedade do que deveria
ser cada um dos membros dessa sociedade. Longe de mim julgar possível
que cada um de nós venha a ser um pesquisador no sentido acadêmico. Nem
seria possível, nem resolveria a dificuldade da sociedade contemporânea.
De certo modo, o que estou a insinuar é talvez
até mais amplo, embora não me pareça tão difícil. Se a experiência de
Keele pode constituir um exemplo do que se deveria fazer para dar ao
cidadão do nosso tempo a weltanschauung da cultura contemporânea,
convém recordar que isto representaria sòmente a aquisição de uma visão
adequada ao nosso tempo. Embora extremamente importante, esta visão não
lhe bastará, se dela não emergir a atitude e o propósito profundos de
se fazer um eterno estudante, cujo interêsse permanente e vivo seja o de
aprender sempre e mais. E nisto lembrará êle o pesquisador. Mas,
enquanto êste é um profissional empenhado em um pequeno campo de
conhecimento e devotado a ampliá-lo, o cidadão comum é um homem comum
empenhado em compreender e em agir cada vez mais lùcidamente e mais
eficientemente em sua ocupação e em sua vida global, pois lhe cumpre
sentir-se responsável pela sua sociedade.
Acaso já refletimos que, se considerarmos
utópica essa aspiração, teremos lavrado a nossa condenação à civilização
científica que o homem está criando, mas será incapaz de dirigir e
comandar. O que nos leva a considerar utópica esta imaginada integração
do homem com a sua criação científica é a situação ainda dominante na
educação oferecida pela escola.
H. G. Wells, um dos reconhecidos profetas dos
primeiros tempos de nosso século, proclamou, na década dos vinte, que
nos achávamos então em um páreo entre educação e catástrofe. Já na outra
década venceu a catástrofe, de que sòmente agora parece vamos
emergindo. Nosso otimismo, entretanto, não pode ser grande, pois, se
sentimos nos entendimentos recentes um alvorecer de sabedoria política, o
que por certo nos conforta, por outro lado, no campo da educação,
cumpre-nos registrar apenas alguns significativos progressos no preparo
de novos cientistas. Na educação comum do homem comum os progressos são
os mais modestos. O homem comum está caminhando para ser o escravo como o
entendia Aristóteles, ou seja, o homem que está na sociedade mas não é da sociedade. O progresso científico está na tela e conduz o homem nenhum de nós sabe para onde.
Ou melhor, todos sabemos, pois ninguém
desconhece que, se a educação é cada vez mais fraca, o anúncio e a
propaganda são cada vez mais fortes e nossa sociedade - sobretudo nos
países em que já se fêz afluente - é uma sociedade cujo objetivo se
reduz ao de consumir cada vez maiores quantidades de bens materiais.
Conseguimos condicionar o homem para essa carreira de consumo,
inventando necessidades e lançando-o num delírio de busca ilimitada de
excitação e falsos bens materiais.
Ora, se o anúncio logrou obter isto, foi porque
os meios de influir e condicionar o homem se fizeram extremamente
eficazes. Não será isto uma razão para não considerar utópico o nosso
desejo de formar um homem capaz de ser responsável pela sua sociedade e
não o seu joguête, ou o seu escravo no sentido aristotélico?
Para isto, ouso pensar, o problema consistiria
em formar um mestre, êsse mestre de amanhã, que fôsse um pouco do que já
são hoje certos jornalistas de revistas e páginas científicas, um pouco
dos chamados por vêzes injustamente popularizadores da ciência, um
pouco dos cientistas que chegaram a escrever de modo geral e humano
sôbre a ciência, um pouco dos autores de enciclopédias e livros de
referência e, ao mesmo tempo, mais do que tudo isto. O mestre de amanhã
teria, com efeito, de ser treinado para ensinar bàsicamente as
disciplinas do pensamento científico, ou seja, a disciplina do
pensamento matemático, a do pensamento experimental, a do pensamento
biológico e a do pensamento das ciências sociais, e com fundamento nessa
instrumentação da inteligência contribuir para que o homem ordinário se
faça um aprendiz com o desejo de continuar sempre aprendendo, pois sua
cultura não só é intrìnsecamente dinâmica mas está constantemente a
mudar-lhe a vida e a obrigá-lo a novos e delicados ajustamentos. Por que
não será impossível êste mestre? Porque são extraordinários os
recursos tecnológicos que terá para se fazer um mestre da civilização
científica, podendo para isto utilizar o cinema como forma descritiva e
narrativa e a televisão como forma de acesso a mestres maiores que êle. O
mestre seria algo como um operador dos recursos tecnológicos modernos
para a apresentação e o estudo da cultura moderna, e como estaria,
assim, rodeado e envolvido pelo equipamento e pela tecnologia produzida
pela ciência, não lhe seria difícil ensinar o método e a disciplina
intelectual do saber que tudo isso produziu e continua a produzir. A sua
escola de amanhã lembrará muito mais um laboratório, uma oficina, uma
estação de televisão do que a escola de ontem e ainda de hoje. Entre as
coisas mais antigas, lembrará muito mais uma biblioteca e um museu do
que o tradicional edifício de salas de aulas. E, como intelectual, o
mestre de amanhã, nesse aspecto, lembrará muito mais o bibliotecário
apaixonado pela sua biblioteca, o conservador de museu apaixonado pelo
seu museu e, no sentido mais moderno, o escritor de rádio, de cinema ou
de televisão apaixonado pelos seus assuntos, o pIanejador de exposições
científicas, do que o antigo mestre-escola a repetir nas cIasses um
saber já superado.
Não se diga que estou a apresentar observações
que sòmente se aplicam às sociedades afluentes. O caso dos países
subdesenvolvidos não é diverso, porque os recursos tecnológicos da
propaganda e do anúncio também já lhe chegaram e não lhe será possível
repetir a história dos sistemas escolares mas adaptar-se às formas mais
recentes da escola de hoje. Está claro que concretamente seu problema é
diverso. A sua luta não é ainda para comandar a produtividade mas para
chegar à produtividade. A sua busca pelos bens materiais é muito mais
imediata e dispensa os esforços da Madison Avenue. Paradoxalmente,
entretanto, o espírito do anúncio e da propaganda lhe chegam antes de
haver podido mudar sua estrutura social para se fazer uma sociedade
científica de alta produtividade. E, por isto mesmo, o anúncio ainda é
mais tràgicamente irônico. Somos pela propaganda condicionados para
desejar o supérfluo, para atender a necessidades inventadas, antes de
haver atendido nossas reais necessidades.
Também, portanto, haveremos de ter novas escolas
e novos mestres, embora venham ser êles aqui mais os iniciadores do
método científico nas escolas do que os simples adaptadores das escolas
das sociedades afluentes já em pleno domínio da produção e do progresso
científico.
Como marchamos, entretanto, para uma situação
idêntica, cumpre-nos esforçar-nos para queimar as etapas e construir a
sociedade moderna com uma escola ajustada ao tipo de cultura que ela
representa.
Tôdas essas considerações nascem de uma atitude
de aceitação do progresso científico moderno, de aceitação das terríveis
mudanças que êste progresso está impondo à vida humana e da crença de
que ainda não fizemos em educação o que deveria ser feito para preparar o
homem para a época a que foi arrastado pelo seu próprio poder criador.
Todo o nosso passado, nossos mais caros preconceitos, nossos hábitos
mais queridos, nossa agradável vida paroquial, tudo isto se levanta
contra o tumulto e a confusão de uma mudança profunda de cultura, como a
que estamos sofrendo. A mocidade contudo está a aceitar esta
mudança, é verdade que um tanto passivamente, mas sem nada que lembre a
nossa inconformidade. A mudança, todos sabemos, é irreversível. Só
conseguiremos restaurar-lhe a harmonia, se conseguirmos construir uma
educação que a aceite, a ilumine e a conduza num sentido humano.
O desafio moderno é sobretudo êste: conseguir
que todos os homens adquiram a disciplina intelectual de pensamento e
estudo que, no passado, conseguimos dar aos poucos especialistas dotados
para essa vida intelectual. O conhecimento e a vida adquiriram
complexidade tamanha que só uma autêntica disciplina mental poderá
ajudá-lo a se servir da ciência, a compreender a vida em sua moderna
complexidade e amplitude e a dominá-la e submetê-la a uma ordem humana.
Ao alvorecer da vida de pensamento racional que
deu origem a nossa civilização ocidental, os primeiros professôres
tiveram em Sócrates o seu mais significativo modêlo. Nada menos podemos
pedir hoje ao professor de amanhã. Os mestres do futuro terão de ser
familiares dos métodos e conquistas da ciência e desde a escola primária
iniciar a criança e depois o adolescente na arte sempre difícil e hoje
extremamente complexa de pensar objetiva e cientìficamente, de utilizar
os conhecimentos que a pesquisa lhe está a trazer constantemente e de
escolher e julgar os valôres, com que há de enriquecer a sua vida neste
planêta e no espaço que está em vésperas de conquistar. Reunindo, assim,
funções de preceptor e de sacerdote e profundamente integrado na
cultura científica, o mestre do futuro será o sal da terra, capaz de
ensinar-nos, a despeito da complexidade e confusão modernas, a arte da
vida pessoal em uma sociedade extremamente impessoal.
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